Isenção na taxa de US$ 50: clientes relatam que tempo de entrega de compras internacionais diminuiu
02/10/2023Confira as vagas de emprego disponíveis em Petrolina, Araripina e Salgueiro nesta segunda-feira (2)
02/10/2023 Defensoria Pública do Pará entrou com ações na Justiça contra empresas. Três projetos estão sobrepostos a áreas de florestas públicas estaduais sem autorização do governo do Pará. Créditos gerados foram usados por grandes multinacionais para compensar emissões. O g1 esteve na região; comunidades locais disseram não ter sido beneficiadas. Fraude na Amazônia: empresas usam terras públicas como se fossem particulares para vender créditos de carbono a multinacionais
A Defensoria Pública do Estado do Pará entrou com três ações civis na Justiça contra empresas e pessoas físicas envolvidas em três projetos de crédito de carbono na zona rural de Portel, município de tradições ribeirinhas localizado no arquipélago do Marajó, a 264 km de Belém.
Entre as irregularidades apontadas pela Defensoria, está a violação do direito territorial das comunidades que vivem em parte das áreas usadas pelos projetos, além da violação do direito dessas comunidades de serem consultadas de forma livre, prévia e informada sobre os projetos.
Essas iniciativas geradoras de créditos de carbono estão, em parte, sobrepostas a cinco assentamentos dos chamados Projetos Estaduais Agroextrativistas (PEAEX). São terras públicas estaduais tituladas pelo governo do Pará, onde vivem pelo menos 1.484 famílias ribeirinhas em comunidades dispostas ao longo das margens dos rios que cortam o município. No total, os cinco assentamentos somam mais de 3.300 km2 (o equivalente à área de duas cidades de São Paulo) de florestas públicas.
Os projetos, no entanto, não tiveram qualquer autorização dos órgãos estaduais para se instalarem nessas áreas.
O g1 viajou até Portel e percorreu cerca de 400 km pelos rios Anapu e Pacajá para ouvir lideranças e moradores das áreas. Os entrevistados afirmam que os representantes das empresas não disseram que os projetos eram de crédito de carbono e que eles também não trabalharam junto com associações comunitárias e organizações que já atuavam na região.
“Um dos questionamentos que fazíamos era quem financiava o projeto. E eles não quiseram dizer para gente. Também não disseram quem era o coordenador, o dono da empresa, só diziam ser uma ONG”, conta Gracionice Silva, hoje presidente da Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Alto Pacajá, que representa um dos assentamentos.
“Nós não somos contra projetos de crédito de carbono, mas da forma com que está sendo feito, o dinheiro está indo a gente não sabe nem para o bolso de quem”, diz ela.
A falta de transparência e clareza dos representantes dos projetos também é um traço comum nos relatos colhidos pelo g1.
Os moradores contam que, ao longo dos anos, grupos diferentes de pessoas apareciam nos territórios sempre se comportando de maneira evasiva a respeito de quem representavam, como eram financiados e quais eram seus objetivos.
Na abordagem às comunidades, eles ofereciam a emissão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) como se fosse um título de terra (mais abaixo).
Acontece que o CAR é um cadastro público eletrônico auto declaratório obrigatório para todos os imóveis rurais para prestar informações ambientais e não equivale a um documento de posse da terra.
VEJA O QUE DIZEM OS CITADOS
Os três projetos foram registrados em 2020 e 2021 pela Verra, principal certificadora internacional, e vendem há anos créditos de carbono a empresas que querem compensar suas emissões de gases do efeito estufa — são centenas de compradoras, entre elas estão empresas mundialmente conhecidas, como Air France, Boeing, Braskem, Toshiba, Samsung UK, as farmacêuticas Bayer e Takeda, e até o Liverpool, time de futebol inglês. Consultadas pela reportagem, as multinacionais alegam, de forma geral, que não tinham conhecimento das irregularidades apontadas pela Defensoria (veja mais aqui).
Cada contrato de compra e venda de crédito de carbono é negociado de forma privada entre as partes. Assim, não é possível saber exatamente quanto os projetos lucraram com a venda dos créditos.
Em 2021, quase 1,4 milhão de créditos de um dos projetos, o Pacajaí, por exemplo, foi usado por empresas para compensar emissões. Naquele ano, o valor médio global dessa categoria de crédito de carbono foi de US$ 5,80, segundo a Ecosystem Marketplace. Assim, num cenário completamente hipotético em que todos esses créditos tenham sido vendidos a este valor em 2021, seriam mais de US$ 8,1 milhões. O projeto Pacajaí comercializa créditos desde pelo menos 2015.
Abordagem nas comunidades: uso do CAR
Lauro dos Santos, morador de assentamento na região do rio Anapu, segura Cadastro Ambiental Rural (CAR) individual expedido por representantes dos projetos de crédito de carbono.
Giaccomo Voccio/g1
Segundo as lideranças locais ouvidas pela reportagem, os representantes dos projetos se valeram de um momento em que a regularização fundiária dos assentamentos ainda estava em andamento. Nesse contexto, eles se aproximavam das famílias oferecendo o Cadastro Ambiental Rural como se fosse o equivalente ao documento de posse de terra.
Acontece que em áreas de assentamentos estaduais, o CAR é expedido de forma coletiva — e não individual.
“Em 2017, percebemos um fluxo maior de pessoas estrangeiras, que já não falavam o português, entrando nos territórios. Em 2018 e 2019, eles saíram para campo e começaram a abordar as famílias para fazer demarcação de áreas com coordenadas geográficas”, conta Gracionice. Ela diz que, em 2020, o fluxo de pessoas de fora das comunidades se intensificou. Elas “pressionavam” as famílias para fazer o CAR.
“Nós vivemos em uma região que a regularização fundiária é muito precária”, afirma Nilson Silva, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Portel, que auxiliou o governo estadual no processo de regularização fundiária.
“Então, quem chega com um documento dizendo que é um documento de terra, as famílias acabam acreditando. Dê um documento para uma família ribeirinha guardar e volte 50 anos depois que você vai encontrar”.
De fato, o g1 conversou com moradores que ainda guardam cadastros expedidos por representantes dos projetos — atualmente, eles já sabem que os documentos que receberam são irregulares. Na época, muitos ouviram que o cadastro era uma “segurança” para a terra de cada um, como se fosse um registro, e que, com ele, poderiam obter empréstimos em bancos.
“Vai servir para, por exemplo, quando tu quiser fazer um projeto no teu terreno, tu já pode apresentar esse CAR lá no banco”, relata Marsivan Lima, morador da região do rio Pacajá.
A reportagem também ouviu moradores que se negaram a assinar os papeis apresentados por essas pessoas. Um deles, que prefere não se identificar por medo de represálias, disse que não queria dividir a área onde ele vive com o irmão e cinco filhos.
“Nós começamos a receber famílias no sindicato que diziam: ‘estão querendo dividir a minha terra, me deram um documento, esse documento tem validade?’”, relata Nilson Silva. “E a gente sempre explicava que o Cadastro Ambiental Rural é um documento ambiental declaratório, mas não é documento de terra”.
Outro morador da região do rio Anapu, que também prefere o anonimato, contou que a emissão dos cadastros provocou conflitos entre vizinhos — relato corroborado por outros entrevistados. Isso porque os cadastros eram de até 100 hectares, mas nem todos os moradores vivem em áreas desse tamanho exato. Então, em alguns casos, os representantes dos projetos demarcaram pedaços de vizinhos.
Além disso, os moradores relatam que os representantes dos projetos também adentraram os terrenos demarcando áreas de floresta para além dos 100 hectares. Essas áreas, no entanto, não foram colocadas em nome dos ribeirinhos.
“O que ficasse para dentro da floresta, eles já transferiam para o nome de alguém das empresas”, disse Gracionice Silva. “O resto das áreas eles já diziam que era deles”, contou um dos moradores que prefere o anonimato.
Marcador de geolocalização colocado por envolvidos em projeto de crédito de carbono no terreno onde vive um ribeirinho entrevistado pela reportagem. O morador, da região do rio Anapu, que preferiu não se identificar, contou que pessoas chegaram no terreno dizendo que queriam fazer a geolocalização das áreas para produzir um Cadastro Ambiental Rural para os ribeirinhos.
Giaccomo Voccio/g1
“O Cadastro Ambiental Rural foi usado de forma ilegal, sendo vendida para as comunidades a imagem de que se tratava de um benefício social gerado pelos projetos”, explica a defensora pública agrária Andreia Barreto, autora das ações na Justiça.
Segundo ela, os cadastros foram usados pelos representantes do projeto como forma de tentar legitimar o processo junto às comunidades.
Após as denúncias dos moradores, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) cancelou mais de 200 cadastros. Segundo a secretaria, o órgão identificou que apenas duas pessoas foram responsáveis pela inscrição de mais de 60% dos CARs em Portel, o que foge ao padrão do restante do Estado.
‘Fogãozinho’ que ‘não serve’
Perguntados se os representantes dos projetos explicavam o por quê da oferta gratuita de emissão do CAR e o que eles diziam querer em troca, os moradores locais contam que não foram informados.
“O que eles cobravam em troca? Só a assinatura da pessoa como apoiador. Tinha que dar assintura para fazer o projeto e aí nesse projeto estava o CAR dando direito a 100 hectares para cada ribeirinho”, disse um dos moradores que preferiu não se identificar.
Outro morador do rio Anapu, que também quis resguardar a identidade, conta que ele e outros receberam um “fogãozinho” como suposto benefício.
O g1 encontrou esses fogões em mais de uma casa. São fogões bem pequenos, que podem ser carregados com duas mãos, abastecidos por, no máximo, alguns feixes de madeira. Os moradores ouvidos são unânimes em dizer que os fogões são inúteis.
Fogão distribuído por envolvidos em projetos de crédito de carbono como se fosse um benefício social. Moradores que receberam o fogão classificam o equipamento como “inútil”
Giaccomo Voccio/g1
“Para nós aquilo não serve. Eu acho que eles pensaram que a gente era muito atrasado com as coisas, né? Mas a gente faz melhor que isso aqui”, disse Nilton de Oliveira, que vive nas margens do rio Anapu.
O projeto identificado na Verra como Rio Anapu-Pacajá menciona a entrega de fogões em sua documentação, dizendo que seriam “fogões ecológicos”. Já os projetos Pacajaí e RMDLT dizem nos documentos que ofereceriam “fogões eficientes para a produção de farinha de mandioca”. A reportagem não encontrou vestígios desse tipo de estrutura.
‘Não abrir roça’
Não apenas os projetos não trouxeram benefícios palpáveis para as famílias locais, como ainda tentaram coibir as atividades dos moradores locais.
“Falaram para a gente não fazer roça na parte de mata”, contou Lauro dos Santos, ribeirinho que vive nas margens do Anapu.
O relato dele foi repetido por vários outros moradores ouvidos pelo g1. Alguns deles chegaram a ser informados que receberiam um pagamento por isso — outros, não ouviram nada sobre remuneração.
“Eles falavam que era para preservar a floresta, para ninguém cortar, que iam fazer salário para todos os ribeirinhos para não mexer na floresta e que aí só poderia criar abelha”, relata um deles.
Nenhuma dessas promessas se concretizou. Não houve pagamento às famílias. Atividades de treinamento e material para criação de abelhas também não aconteceram, dizem os moradores.
Marsivan Lima, da região do rio Pacajá, conta que as pessoas que lhe ofereceram o CAR também disseram que era para evitar desmatar, fazer queimas, caçar e pescar.
“Mas eu não obedeci nada, porque se eu fosse ficar esperando aquilo, eu estava passando fome, porque eu não poderia fazer minha roça, do que eu ia viver?”, questiona ele, relatando que recebeu uma cesta básica — “negocinho pouquinho dentro de um saquinho, só”.
Sem consulta
Moradores em comunidade ribeirinha em área de assentamento estadual em igarapé no rio Pacajá, em Portel (PA).
Giaccomo Voccio/g1
Lideranças e moradores locais afirmam que em nenhum momento as famílias foram devidamente consultadas a respeito dos projetos.
Os representantes das iniciativas sequer explicaram que estavam fazendo projetos de crédito de carbono. De todos os entrevistados pela reportagem, apenas um deles ouviu o termo por parte dos envolvidos nos projetos
“Eles só vieram falar isso depois que eu sentei com eles durante duas horas, fazendo pergunta: que que isso vinha trazer para nós e para eles também? Com que interesse faziam isso? Só aí começaram a explicar justamente que era sobre esse gás carbônico”, contou Nilton.
“As comunidades foram saber o que eram esses projetos, quando a gente foi para lá informar”, diz Nilson Silva, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Portel. Em novembro de 2022, a ONG WRM produziu um relatório sobre os projetos em Portel, publicado pelo site Intercept.
“Não houve consulta, não foi feita nenhuma reunião de base. O que foi feito foi essa aproximação dos representantes dos projetos falando: ‘trouxe um fogão, trouxe um documento de terra, trouxe cesta básica, se vocês aceitaram é só assinar aqui’. Mas não era para cesta básica, eram assinaturas para autorizar o projeto”.
Em áreas de comunidades tradicionais, a legislação internacional a qual o Brasil se submete determina que antes de qualquer ato administrativo que afete o território é preciso realizar uma “consulta livre, prévia e informada”, o que, segundo também aponta a Defensoria, não aconteceu.
Em tese, projetos de crédito de carbono deveriam beneficiar as comunidades que vivem nas áreas das iniciativas, seja por meio de remuneração direta, destinando um percentual da venda dos créditos para as famílias, seja por meio de outros benefícios, como atividades de capacitação. Não é o que parece estar acontecendo no caso dos projetos em Portel.
Segundo as lideranças locais ouvidas pela reportagem, os moradores dos assentamentos não receberam nenhum centavo da venda dos créditos de carbono gerados pelos projetos.
Os benefícios se limitaram a:
Distribuição de cestas básicas, camisetas e dos fogões à lenha
Produção de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) individuais, apresentados como se fossem documentos de titularidade da terra — o que não corresponde à realidade.
Para o engenheiro florestal Carlos Augusto Ramos, doutorando no Instituto Amazônico de Agriculturas familiares da UFPA, a ameaça de rentismo é real: “empresas internacionais começam a negociar créditos de carbono não gerando riquezas para o local, e sim apenas para especulação”, afirmou ele em entrevista ao g1.
‘Quem protege a floresta somos nós que habitamos aqui’
Em julho, o Ministério Público Federal, em conjunto com o Ministério Público do Estado do Pará, publicou uma nota técnica com orientações para a proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais no mercado de carbono. Os órgãos recomendam que:
o direito à consulta livre, prévia e informada seja resguardado
os contratos de crédito tenham intervenção estatal
a repartição de benefícios advindos pelos projetos seja feita respeitando a autonomia dos povos e comunidades tradicionais
as empresas certificadoras ou beneficiárias de crédito de carbono criem auditorias que comprovem a garantia dos direitos das populações locais e ouvidorias externas para o encaminhamento de denúncias
Em setembro, foi apresentada a versão mais recente de um projeto de lei que pretende regulamentar o mercado de crédito de carbono no Brasil.
O texto, em análise pelo Senado e construído em conjunto com o Executivo, tem um capítulo específico para tratar do mercado de carbono voluntário em áreas de comunidades tradicionais — caso dos projetos em Portel — e prevê a obrigatoriedade do consentimento das comunidades “resultante de consulta livre, prévia e informada”, além de “definição de regra para a repartição justa e equitativa” e gestão participativa dos eventuais ganhos da comercialização dos créditos.
“Se tiver que ter algum projeto de crédito de carbono que vá ajudar na preservação ambiental da floresta, o recurso deve ficar com a comunidade, com as famílias, porque assim elas vão ter recursos para subsistência e até mesmo para fazer outras coisas sustentáveis”, diz Nilton Silva, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Portel.
Para Gracionice Silva, da Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Alto Pacajá, e outros moradores ouvidos, esse tipo de pagamento possibilitaria que as comunidades investissem em infraestrutura, com ganhos para a saúde e para a educação, além de poder trazer recursos para melhorias nos sistemas de plantio e na condição financeira das famílias ribeirinhas.
“Se ainda tem floresta assim aqui, se ainda tem algum recurso natural que essas empresas precisam para estarem ganhando e faturando, somos nós os responsáveis por manter essa floresta viva”, diz ela.
Fonte: G1 Read More